odeio livros

Ir à feira do livro é um acto de masoquismo. Provoca dor e prazer. Um prazer que dói. Uma dor da qual não fujo. Uma promessa de êxtase que descamba em dor. Ano após ano o calvário repete-se.

Aprendi a não frequentar livrarias, mas a feira é a sereia da qual não consigo escapar. Ouço a sua voz ao longe e caio inevitavelmente no seu regaço.

Tenho vergonha, mas por esta altura já é por demais evidente. Eu e os livros temos uma relação difícil, quiçá tóxica, mas que apenas concebo como platónica.

A peregrinação anual à feira expõe-me, dilacera-me.
É o momento de revelação, em que a nossa relação se expõe para quem queira ver.

Sinto um aperto na garganta. O peito a colapsar e a espremer o coração. A ansiedade rouba-me o ar. Minúsculo olho incrédulo perante a enormidade de cultura, conhecimento e criatividade…
Sinto-me uma criança paralisada por tantos estímulos e desejos. Imagino um jovem virgem à frente de uma ninfa desnuda.

Nunca vou conseguir ler tudo aquilo. Mas a frustração não vem desta realização de primeiro grau. Afinal ninguém vai ler aquilo tudo.

O embate vem da vergonha, da interiorização de admitir que eu não leio. Leio tão pouco, que não dá para medir. É como medir a espessura de um cabelo com uma régua. Nada. Incomensuravelmente infímo.

Não havendo consumação da leitura, a minha relação com os livros é puramente platónica. Eu gosto da ideia dos livros. Gosto da ideia de ler. Mas descobri que este amor é platónico, pertence ao mundo das ideias, dos desejos, dos conceitos.
Ir á feira é como ir a um peep-show, um show em que vês mas não tocas, olhas mas não consomes. Estão ali para te provocar, para te excitar. E tu sabes que a não consumação do desejo é o maior prazer que podes ambicionar. 

Ódio não é o antónimo de amor. Ódio é amor. O antónimo de amor é indiferença.

Eu amo livros na mesma medida que os odeio.
Tenho vergonha de os odiar, mas ainda mais de não os ler.

É estranho. É como medíssemos o amor pelo número de consumações do ato.

Não me vou enganar. Não consigo dizer “nunca mais”. Sem consumação, com a dor que me é familiar, vou fatalmente voltar.

Pelo meu amor-ódio pelos livros.


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