não se passou comigo

Queria contar-te uma história. Não se passou comigo, mas aconteceu. Digo isto para que percebas que não é uma confissão ou um diário. Aconteceu mesmo, mas não comigo.

Aconteceu há uma semana. Ou foi um mês, ou um ano. Não interessa, aconteceu no passado, por isso te conto. Podia contar-te sobre o futuro, mas isso seria outro conto.

Foi há uma semana, em Lisboa. Onde? Num bairro, numa rua qualquer. Não interessa. A Joana (nome fictício, claro) apanhou um grande susto. Gostava de te explicar a multitude de emoções que ela sentiu. Mais do que o acontecimento em si, foi o destapar de memórias que tinha como esquecidas. Uma trip. Parecia banal, até rasgar o saco das memórias.

Nada é simples. Tudo, hoje em dia, parece ter ramificações, explicações profundas e intrincadas. Ver uma barata e dar um grito já não é só ver uma barata e dar um grito. É preciso considerar a condição de género e os estereótipos com que fomos condicionados — era um homem ou uma mulher que se deparou com a dita? Gritou de pânico ou berrou de raiva? Depois, necessariamente, vêm questões sobre a vida, os seres vivos, o respeito pelo outro (a barata) e a discriminação de espécies (barata vs. gato). Nada é simples, eu avisei.

Podia só gritar, pisar a barata aos saltos enquanto gritava: “Morre, besta! Morre, besta!”

Os vizinhos estranhariam. Como bons vizinhos que se prezam, não diriam nada. A verdade é que não faço ideia se estranhariam ou não. Não os conheço.

Pode estar uma pessoa a morrer, a ser espancada, ou, neste caso, a espancar, e nada. Devem dizer mal, pensar pior, resmungar ou maldizer a espécie (a minha). Não sabem se estou a espancar o meu filho, a minha parceira ou uma barata.

Ouvem uma série de estrondos que parecem alguém a bater (ou será saltar?) com força, enquanto gritam de raiva: “Morre, besta! Morre, besta!” Pacífico. Nada de preocupante.

A Joana? Está melhor.

O susto não passou. Está lá, sempre lá. Antes fossem baratas que se pudessem esmagar — “Morre, besta! Morre!”

Há algo mais insidioso, mais profundo, mais perene, que parece imune ao tempo.

Dizem que o tempo cura tudo. É verdade — nem que seja no dia da nossa morte.

Por isso sorri perante a dor.


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