Autor: Hugo Macedo

  • acordar (fds #1)

    Acordo inconsciente. 

    Um silvar de água a correr pelos canos entra-me na cabeça. 

    Com os olhos ainda fechados, tento descortinar de onde vem. Um autoclismo a encher, uma torneira aberta por trás da parede. 

    O som acorda uma dor de cabeça. Cerro o sobrolho. Hesito em abrir os olhos. Por entre as pálpebras percebo que não está escuro. Há sombras e raios de luz que entram e dançam.

    Procrastino o momento de encarar a realidade. Quero virar-lhe as costas. Viro-me na cama.

    É então que um desconforto agudo  sobe pelo braço esquerdo. A mão direita apalpa e procura a dor. Sinto algo pegajoso mas seco. A mão é repelida com asco. Não consigo precisar. Os olhos recusam-se a abrir. A mão ganha coragem e avança agora com mais cautela. Sinto um plástico, uma película aderente, que está enrolada no antebraço. 

    Não faço ideia de onde vem nem por que está enrolada no braço. A estranheza é suficiente para que os olhos descolem. Queria adiar o momento, mas aquela coisa no braço força-me a encarar a luz. 

    Começo a desenrolar a película que envolve o braço. Com um esgar, tomo de novo consciência da dor aguda. Continuo a desenrolar cuidadosamente, descolando o plástico peganhento, volta após volta.

    Sinto um calafrio e um aperto no estômago.

    Os olhos preguiçosos abrem-se num salto. Vejo-a. Tapo-a. O corpo reage antes de eu conseguir pensar. Espreito de novo. Tapo-a mais uma vez. Não acredito no que estou a ver. Uma tatuagem apareceu no meu braço. É essa coisa que se esconde por trás daquele plástico peganhento. Não é possível! Como é que isto aconteceu? Não procuro a resposta, só imploro que seja um pesadelo.

    Aperto o braço. Sinto dor. Aperto mais. E mais. Dor é a única coisa que quero sentir.

    Enquanto encaro esta visão que me parece irreal, ouço uma voz suave, rouca e firme: 

    “É tua. Agora ama-a como uma filha”

    Não fazia ideia de quem falava e muito menos percebia o que dizia.


    PS: este texto é parte integrante de um projecto de ficção com o nome provisório "FDS"

  • dever d’acção

    Ao direito à indignação tem que vir acoplado o dever da ação. É isto. Simples.

    Mas vamos por partes.

    Temos o direito à indignação. Certo. Exigimos, lutamos pelo dito. Com que direito? Com o direito de lutar pela nossa existência, pelas nossas exigências, pelos nossos direitos.
    Temos o direito de lutar pelos direitos. Se parece circular, é porque é.

    Abdicar do direito à indignação é negar a liberdade de expressão de uma opinião já formulada e que espera expressão. Porque primeiro a indignação é opinião crítica ainda por expressar.

    Mas a indignação não pode ficar pela sua expressão. Se ela nasce da insatisfação e do apelo à mudança — algo está mal e precisa ficar bem — a indignação exige ação.

    A indignação pura pode ter algo de romântico, de trágico. Ela luta pelo direito a existir para que possa morrer de irrelevância. Ao evocar a ação reparadora, ela autodestrói-se.
    Esse fado antinatural leva a que por vezes o instinto de sobrevivência se sobreponha. A indignação troca as voltas ao destino e eterniza-se como protesto inconsequente e não como prenúncio e condição para a mudança apregoada.

    Quando separamos o progenitor da indignação do ator da ação, estamos a criar um cisma:
    NÓS indignamo-nos sobre a ação do OUTRO.
    NÓS temos razão, ao OUTRO cabe a correção.

    Quando apenas nos indignamos ,delegamos a ação ao OUTRO. NÓS indignamo-nos e os outros que mudem. NÓS indignamo-nos para que os OUTROS se dignem a agir.

    E se com o direito à indignação viesse o dever da ação?

    Ou haveria menos indignação, porque nem todos estão dispostos a agir sobre o que apregoam. Ou haveria mais ação, mais mudança e isso levaria a menos indignação.

    Em qualquer dos casos viveríamos menos amargos de indignação, e talvez mesmo, num mundo melhor, mais positivo e construtivo.

  • não se passou comigo

    Queria contar-te uma história. Não se passou comigo, mas aconteceu. Digo isto para que percebas que não é uma confissão ou um diário. Aconteceu mesmo, mas não comigo.

    Aconteceu há uma semana. Ou foi um mês, ou um ano. Não interessa, aconteceu no passado, por isso te conto. Podia contar-te sobre o futuro, mas isso seria outro conto.

    Foi há uma semana, em Lisboa. Onde? Num bairro, numa rua qualquer. Não interessa. A Joana (nome fictício, claro) apanhou um grande susto. Gostava de te explicar a multitude de emoções que ela sentiu. Mais do que o acontecimento em si, foi o destapar de memórias que tinha como esquecidas. Uma trip. Parecia banal, até rasgar o saco das memórias.

    Nada é simples. Tudo, hoje em dia, parece ter ramificações, explicações profundas e intrincadas. Ver uma barata e dar um grito já não é só ver uma barata e dar um grito. É preciso considerar a condição de género e os estereótipos com que fomos condicionados — era um homem ou uma mulher que se deparou com a dita? Gritou de pânico ou berrou de raiva? Depois, necessariamente, vêm questões sobre a vida, os seres vivos, o respeito pelo outro (a barata) e a discriminação de espécies (barata vs. gato). Nada é simples, eu avisei.

    Podia só gritar, pisar a barata aos saltos enquanto gritava: “Morre, besta! Morre, besta!”

    Os vizinhos estranhariam. Como bons vizinhos que se prezam, não diriam nada. A verdade é que não faço ideia se estranhariam ou não. Não os conheço.

    Pode estar uma pessoa a morrer, a ser espancada, ou, neste caso, a espancar, e nada. Devem dizer mal, pensar pior, resmungar ou maldizer a espécie (a minha). Não sabem se estou a espancar o meu filho, a minha parceira ou uma barata.

    Ouvem uma série de estrondos que parecem alguém a bater (ou será saltar?) com força, enquanto gritam de raiva: “Morre, besta! Morre, besta!” Pacífico. Nada de preocupante.

    A Joana? Está melhor.

    O susto não passou. Está lá, sempre lá. Antes fossem baratas que se pudessem esmagar — “Morre, besta! Morre!”

    Há algo mais insidioso, mais profundo, mais perene, que parece imune ao tempo.

    Dizem que o tempo cura tudo. É verdade — nem que seja no dia da nossa morte.

    Por isso sorri perante a dor.

  • meta-prefácio

    (ou prefácio ao Livro dos Prefácios)

    Nunca li prefácios. Raramente, vá. Sempre me irritaram.

    O prefácio fica entre a nossa intenção de ler o livro e o livro em si.

    Se é escrito pelo próprio, é inadmissível. Quer explicar-se? Ou explicar-nos ao que vem? Quer desculpar-se? Ou subir ao púlpito para apresentar a obra?

    Se é escrito por outro, é ainda mais irritante. Alguém que se interpõe entre mim e o autor que escolhi ler. Como se atreve?

    Não sei quem o convidou, nem tampouco porquê. O que é que a obra precisava para precisar de prefácio? Uma ajudinha? Um endosso? Uma explicação, talvez?

    Podemos saltar o dito, mas isso soa-me, e sabe-me, a transgressão. Eu sei que não devia. Mas, lá bem no fundo, todos aprendemos a ler um livro de fio a pavio. Ou fui só eu que senti essa pressão freudiana de não deixar livros a meio, nem os sublinhar, nem os anotar?
    O livro é sagrado, logo, tem de ser respeitado e apreciado de forma imaculada. Como se não fosse desflorado, como se ler fosse um ato platónico.

    Se o prefácio dá contexto, uma introdução, orientação ou mapa, é um remendo. Se o livro precisa disso, por que não coube no livro? Foi um remendo a posteriori? O pré-fácio escreve-se post factum?

    Li algures que o prefácio — sim, há quem escreva sobre os ditos — motiva o leitor para a leitura do livro. Fico pasmado. Já comprei ou arranjei o livro, já me dispus a lê-lo, arranjei o tempo e o espaço para o fazer. Sento-me, reclino-me, respiro e abro o livro. E alguém achou que é nesse preciso momento que eu precisava de motivação?

    Se for para isso, sugiro que coloquem as suas palavras mágicas de motivação num panfleto de promoção ou na contracapa.
    Essa magia também podia dar jeito a meio, quando já perdi o fôlego e estou perdido porque já não sei se a Felismina é a sogra ou a empregada. Fazíamos uma pausa, um interlúdio, e o meio-fácio dava-me alento, resumia o percurso e abria-me a porta para o clímax que se avizinha.

    Por esta altura, alguns estarão já a pensar noutros “pré”, a tentar fazer analogias ou piadolas de gosto duvidoso. Mas vamos a isso. Quem se sinta tentado a comparar o prefácio com os preliminares é porque já não se lembra… de ler prefácios.

    Como veem, tenho uma relação difícil com os ditos.

    E resolvi, com abertura, coragem, entrega e servidão à cultura, fazer a única coisa que me (nos) pode salvar: escrever um livro de prefácios.

    E já que vamos tão destemidos e embalados, declaro desde já: este é o prefácio ao Livro dos Prefácios.

    PS1: Este prefácio insere-se na categoria dos prefácios de autor, que podem ser uma autocrítica ou, melhor, uma reflexão sobre o porquê, o como e demais pormenores do processo de conceção da obra.

    PS2: Espera… se é uma reflexão, por que é que é um pré e não um pós? Ai! Não sei. Falemos disso mais tarde, talvez no pós-fácio.

  • liberdade

    Fui ver. Era a Liberdade. 
    Queria sair. 
    Queria ser.

    Fazia barulho.
    Chamava.
    Gritava.
    Esperneava.

    Queria ser livre.
    Livrar-se das amarras.
    Libertar-se dos grilhões.

    Li ber da de

    Veio com vontade.
    Porque já tem idade.
    Não quer ficar presa.
    Não quer ser presa.
    Tá tudo na mesa.

    Mesma.
    Lesma.


    PS: deviamos pensar na dita recorrentemente, mas por altura do 25 de Abril, é impossível, escapar-lhe.

  • rasgo

    Rasgo o rascunho que contem a verdade que nao consigo encarar.
    O rascunho ficou depedaçado com a verdade que dilacerava a realidade.

    Num rasgo, desfaço o edificio do meu ser.
    Parto-lhe as pernas. Num movimento circular, varro os alicerces, para que caia. 

    Parti, e cais.
    Cais, verbo. Se fosse substantivo seria um cais de partida. 
    Foste, fui. 

    O oceano só é de possibilidades num dia azul de ceu limpo.
    No mar à noite, o breu, engole-nos.
    Saimos do cais, à noite. 
    Saimos, entramos no breu. Não sabemos se voltamos, não sabemos para onde vamos. 

    Vamos.

    Zarpo somente na minha cabeça. Navego na minha cabeça. Afundo-me na minha cabeça.

    Todo este oceano infinito, cabe na minha mente. Que me mente. 

    Mente. Rasgada. Dilacerada.

  • solitário não

    Empático introvertido

    O que quer estar no seu canto. Mas sabe que os outros não. 

    Vive entre o conforto do seu canto e o desconforto que os outros o vejam como isolado. 

    Solitário não, palavra. Deixem-me estar. No meu lugar. No meu canto. Deixem-me.

    Solidão é uma forma de liberdade. 
    Independência. 

    Precisar dos outros uma forma de prisão.
    Dependência. 

    Os outros complicam o que a solidão já resolveu. 

    Viva a liberdade.
    Viva a solidão.

  • o outro

    Podes amar o outro.
    Podes odiar o outro.

    O que não podes é querer mudá-lo. 

    Podes. Mas espera-te o confronto e a frustração. 

    O outro é outro porque não somos nós. 

    Só nos podemos mudar a nós. E ninguém nos pode mudar senão nós.

    Esta ideia pode parecer limitadora. Afinal gostávamos tanto de mudar o outro.

    Mas na verdade é uma libertação. 

    Não é connosco. 

    Já não precisamos nos preocupar.

    Mesmo que queiramos, não é connosco. 

  • falas

    falas falas falas falas falas falas falas falas falas falas falas falas falas falas falas

    Às vezes pergunto-me quando respiras, se respiras.

    De onde vem tanta palavra, tando som, tanta verborreia. De onde vem essa necessidade de evacuar tantas palavras.

    Foi um alarme de evacuação? Foi um despejo compulsivo? Ou um desejo reprimido?

    Onde acumulaste tanta palavra? Onde estavam escondidas?

    Não posso deixar de sentir que regorgitas.
    Perdi a capacidade de sintonizar as palavras. 
    Primeiro tornou-se numa verborreia, depois uma enxurrada, depois um zumbido.

    Não importa. Mesmo que ouvisse. Mesmo que entendesse. Mesmo que tivesse uma opinião. Mesmo que quisesse expressa-la. Mesmo que conseguisse verbaliza-la. Querias ouvir?

    Porque não te calas?
    Porque não páras?

    Diz-me. Ou, melhor, não digas nada.

    Convido-te a saborar o silencio. 

    Não tenhas medo.
    O silêncio não é vácuo.
    O silêncio não te suga a alma.
    O silêncio abre espaço.
    O silêncio é o ar puro da montanha. A água fresca e limpida da fonte.
    Respira, refresca-te e resuscita.

    Não digas nada.
    Não penses.
    Fecha os olhos.
    Concentra-te em ouvir o silêncio.

    sshhhhh.

  • nada

    O que precisas para meditar?

    O que precisas para escrever?

    O que precisas para correr?

    O que precisas para amar?

    Nada. 

    Pouco ou nada precisas para viver.

    Não somos as coisas.

    Não somos as férias.

    Não somos nada que se compre. 

    Não somos o trabalho, o titulo, a organização. 

    Não somos a casa. 

    Não somos o carro.


    Então o que somos?

    Quem somos?

    Somos nada e tudo. Somos o agora, e o sempre.
    Somos um pedaço de humaniade, e a humanidade toda.

    Não somos. Somos.