Autor: Hugo Macedo

  • trabaralhar

    Quando achas que estás a trabalhar. 
    Mas só baralhas e voltas a dar. 

    Procastinas. 
    Não atinas. 

    Mexes nos papéis. 
    Aos papéis. 

    Alt-tab alt-tab alt-tab 
    Não páras de saltar.
    Não terminas e és incapaz de começar. 

    Navegas na gelatina. 

    Vai trabalhar malandro.

    Doí-me a costas. 
    Vou-me deitar. 

  • odeio livros

    Ir à feira do livro é um acto de masoquismo. Provoca dor e prazer. Um prazer que dói. Uma dor da qual não fujo. Uma promessa de êxtase que descamba em dor. Ano após ano o calvário repete-se.

    Aprendi a não frequentar livrarias, mas a feira é a sereia da qual não consigo escapar. Ouço a sua voz ao longe e caio inevitavelmente no seu regaço.

    Tenho vergonha, mas por esta altura já é por demais evidente. Eu e os livros temos uma relação difícil, quiçá tóxica, mas que apenas concebo como platónica.

    A peregrinação anual à feira expõe-me, dilacera-me.
    É o momento de revelação, em que a nossa relação se expõe para quem queira ver.

    Sinto um aperto na garganta. O peito a colapsar e a espremer o coração. A ansiedade rouba-me o ar. Minúsculo olho incrédulo perante a enormidade de cultura, conhecimento e criatividade…
    Sinto-me uma criança paralisada por tantos estímulos e desejos. Imagino um jovem virgem à frente de uma ninfa desnuda.

    Nunca vou conseguir ler tudo aquilo. Mas a frustração não vem desta realização de primeiro grau. Afinal ninguém vai ler aquilo tudo.

    O embate vem da vergonha, da interiorização de admitir que eu não leio. Leio tão pouco, que não dá para medir. É como medir a espessura de um cabelo com uma régua. Nada. Incomensuravelmente infímo.

    Não havendo consumação da leitura, a minha relação com os livros é puramente platónica. Eu gosto da ideia dos livros. Gosto da ideia de ler. Mas descobri que este amor é platónico, pertence ao mundo das ideias, dos desejos, dos conceitos.
    Ir á feira é como ir a um peep-show, um show em que vês mas não tocas, olhas mas não consomes. Estão ali para te provocar, para te excitar. E tu sabes que a não consumação do desejo é o maior prazer que podes ambicionar. 

    Ódio não é o antónimo de amor. Ódio é amor. O antónimo de amor é indiferença.

    Eu amo livros na mesma medida que os odeio.
    Tenho vergonha de os odiar, mas ainda mais de não os ler.

    É estranho. É como medíssemos o amor pelo número de consumações do ato.

    Não me vou enganar. Não consigo dizer “nunca mais”. Sem consumação, com a dor que me é familiar, vou fatalmente voltar.

    Pelo meu amor-ódio pelos livros.

  • o outro

    O outro tem as costas largas. Ou é um saco sem fundo. Ou a fonte de todos os males.

    A culpa é do outro.

    Do chefe. Do sistema. Do poder. Do corrupto. Do costume. Do habito.

    Nunca percebi aquela história da culpa morre solteira. Não sei se se casa ou não. Mas que tem muitos pretendentes tem. Vai com todos.

    Com o chefe. Com o sistema. O poder. O corrupto. O costume. O hábito.

    A culpa é uma prostituta.

    E nós somos proxenetas que alimentamos essas relações – não queremos nada com ela, mas queremos ela com outros. Quantos mais melhor.

    E de quem é a culpa?

    Não é nossa. Nós somos impolutos, puros, virgens, eunucos.

    É do chefe. Do sistema. Do poder. Do corrupto. Do costume. Do habito.

    Nós somos analistas, comentadores, observadores atentos, críticos,… muita coisa. Culpados é que não.

    Analisamos, comentamos, observamos, criticamos … os culpados.

    Somos informados, letrados, versados, ponderados.

    Culpados é que não!

    Isso é o outro.

  • velho

    Quando é que damos conta?

    Em termos absolutos é fácil. Negamos até sei lá. As mãos tremerem. Já lavei os dentes? Quais?

    Vão andar anos a esconder-nos a evidência que o nosso espelho recusa em nos mostrar. Ah! Fiel amigo.

    O drama é o benchmarking.

    O pior é ser apanhado a ser cota. Ou pior, a ser cool e bater com a cara na porta. Não fui verificar mas juro que cota é antónimo de “cool”.

    E quando começamos a questionar se devíamos ter um piercing ou uma tatuagem. Que andámos distraídos mas que obviamente faz todo o sentido.

    O pior para mim é a música. Ouvimos algo novo que gostamos e secretamente achamos que ganhamos um trunfo. Até descobrimos acabou se sair… há 7 anos atrás.

    É nessa altura que paro e rebobino: consigo descrever a música dos 60s, 70s, 80s, 90s, 2000, … o que é a música dos 2010 e dos 2020s (emoji da vergonha)

    Estou desactualizado, desconectado, desorientado…

    Velho não.

  • quando for grande

    Quando for grande vou morrer.

    Até lá… vou viver.

    Assim espero.

    Quero tanto ser grande como morrer. Inevitável mas quanto mais tarde melhor. Até lá não pensamos nisso. Negamos. Fugimos.

    Quando for grande vou deixar de brincar, de sonhar e voar. Vou comportar-me. Vou morrer.

    Quando for grande vou ser alguém. Quando for alguém vou deixar de ser eu. Vou morrer.

    Quando for grande vou. Não fico. Não, Fico. Morto.

    Quando for grande vou morrer.

  • um buraco de luz

    Há quem esteja num buraco e pense que viu a luz 

    Há outros que cientes do buraco, procuram a luz.

    Está escuro.

    Estamos num buraco ou num túnel. 

    Um tunel é uma travesia. Um buraco é um buraco, não tem saída, apenas entrada.

    Caímos num buraco. Entramos num tunel.

    Com tempo apodercemos num buraco ou saímos do tunel.

    A curiosidade procura a luz. 

    O medo vê escuridão.

    Uma luz aparece. Ínfima, tímida, escondida.

    Aproximamo-nos e ela confiante aproxima-se. 

    Mais e mais até nos engolfar no seu brilho. Fomos. Saímos. Entrámos. 

    Passámos. 

  • arte não se consome

    Ontem fui ouvi-la, vê-la, senti-la em palco. Na sua selva.

    A Maria Joao faz musica dificil de consumir.

    A Maria Joao faz musica maravilhosa de apreciar. De saborear. 

    O meu cérebro matemático pergunta se serão duas variáveis ortogonais. Isto é, uma coisa não tem a ver com outra. Talvez. Fast food também é food? Fast fashion também é fashion? ¯\_(ツ)_/¯ 

    E arte saboreia-se ou consome-se. Que sabores são esses?

    A arte da Maria João não se consegue explicar. Tenta.

    Explica-la é dissecá-la e falar de alguns ingredientes. Esquecendo outros. Ignorando outros. E reduzindo o todo às partes. 

    Arte daquela não se explica, não se descreve. Sente-se. 

    A arte da Maria João é mais que música. É performance. Canta com tudo, com a voz e o corpo. É um instrumento de infinitas possibilidades. Por vezes parece um rio por outras um vendaval. Um suspiro. Um esgar. 

    Compramos o disco. Ouvimos a faixa para entreabrir a porta que nos deixa espreitar para o seu mundo que não é o nosso. 

    É impossível empacotar a sua arte. Mesmo que embalada com um visual onírico à altura dos sons. Escapa algo. Muito. 

    A arte não é consumo. 

    Produto é produto

    Arte é arte. 

    Não compro o disco. Fico com o disco em troca de um valor simbólico pelo prazer de contribuir, de dizer obrigado. 

    O disco é o token que me permite voltar a ouvi-la, voltar a sentir a sua energia, não no estúdio, no palco. 

    Isto tudo deixa-me a inquirir sobre a relação entre arte e negócio, arte e subsistência, arte e viver da arte. 

    Falamos pouco sobre como tudo o que somos como sociedade vem de uma reflexão e acção filosófica – de perguntas e hipóteses filosóficas. E a arte anda no meio disto tudo. Como forma de explorar túneis que saem do salão da racionalidade. Que incluem mas não se limitam às emoções. Que exploram os limites da nossa existência ou do sentido dela. Túneis labirínticos que escondem segredos sobre a nossa existência.

    Tem valor. Não de somenos. 

    Qual o preço?

    Posso pagar com MBWay?

  • saborear

    Saborear. Saber saborear para saber melhor, para descobrir o sabor que já estava lá à espera de ser encontrado. O sabor não está escondido. Nós é que andamos distraídos

    Saborear é rapar o tacho, é aproveitar, é deliciar-se até à ultima colher, até à ultima gota. Se ninguém estiver olhar, lambemos, sem vergonha. Sabe ainda melhor, a transgressão dos bons costumes.

    Saborear é aproveitar.

    Querer mais é negar o prazer de saborear até ao tutano. Se houver mais não nos damos ao trabalho. Saborear dá trabalho, implica presença, concentração dos sentidos num momento, num gesto. Saborear não é coisa que se faça distraído. Saborear requer intenção.

    Se me oferecem mais, sem mais, então não preciso de saborear o que tinha. Não preciso de rapar o tacho, sugar até ao tutano. 

    Saborear é a antitese do consumismo impulsivo. 

    Saborear é tantrico. É antitese do mastiga-deita-fora.

    Saborear é chupar o rebuçado até ele se dissolver.

    Dou por mim a passear à beira-mar num dia primaveril daqueles bipolares, entre o sol e chuva. 

    Reparo na beleza da paisagem e do momento. Ainda antes de pensar que o momento vai acabar apanho-me a pensar quando vou ter o próximo. Ainda antes de acabar, já estou ansiar por mais. Caio nesta ansiedade e esqueço-me de saborear. Ansiei por mais quando mais estava à minha frente, agora.

    Saborear pode muito bem ser a formula para acabar com ansiedade, a inveja e tudo o que sofremos por não ter. Porque saboreando, temos, mais.

    Dizem-nos para nos focarmos no presente. Podemos estar no presente, a pensar que está a passar, que vai acabar, que vai fugir. 

    Ou podemos simplesmente saborea-lo, lambe-lo, rapa-lo, suga-lo até ao tutano. 

  • liberdade de insultar e outras formas de expressão

    O insulto sai fácil quando nos faltam os argumentos. É um sinal que tropeçámos nos argumentos, ou melhor que iamos saltando de argumento em argumento até que colocámos o pé em falso, o pé procura argumento e não o encontra. Resta-nos o insulto. “Isso é porque tu és um…” – nominativo, classificativo. Ou um “Vai mas é para…” autoritário. Ou um que quase passa por argumento “Isso são os …. que dizem”, indireto-nominativo.

    Por isso é que o insulto deve ser livre e bem vindo. 

    Embora o povo quisesse que “Se não os vences junta-te a eles” na verdade o povo “se não os vence, insulta-os”. 

    Porque se só me insultas se não me con-vences. 

    Insulta-me e dirte ei quem és – és um derrotado. 

    Vá, insulta-me! Vê-se te atreves!

    Não prometo ser espelho e devolver-te na perfeição. Mas fica já a saber que quando me insultares vou secretamente encher-me de orgulho, quicá corar, de pensar que esgotei-te, limpei o que havia para limpar, e quando rapas o tacho o que sai é um insulto – já não é coisa que se consuma, já é um detrito, queimado, encrustrado. 

    Por isso deviamos liberalizar o insulto. Ou no minimo discriminaliza-lo. 

    É feio, mas não deve ser ilegal. Tolerar o mau gosto dos outros é uma afirmação de liberalismo, é o sinal de uma sociedade tolerante e evoluida. 

    Isto versus a imposição de um suposto bom gosto que só pode ser fascissoide, imposto por um qualquer comité do bom gosto e dos bons costumes.

    A liberdade é caotica, e representa todo o espectro da estética – do bom ao mau gosto de cada um. Ninguém reina, todos têm o direito ao seu gosto, mesmo o mau.

    Percebo que custa mais a quem gosta de ordem, anglos retos, limpos e aceticos. Para aqueles que a ordem é sinal de harmonia de uma existência superior. A ordem bela como oposição ao caos abominavel. Mas não deve ser por acaso que a estética ditatorial sempre gostou de ordem, estrutura, retas e retos.

    O que temos numa sociedade liberal de gostos, não é caos, é uma organica complexa de misturas, dialeticas, dialogos, argumentos e contra-argumentos, encontros e desencontros. Organico e complexo, com multiplas camadas. Por vezes conseguimos distinguir padrões. Zonas desenhadas a esquadro em oposição às que se assumem como esquissos.

    As pessoas do esquadro, não gostam de linhas imperfeitas. Os artistas orgânicos, não gostam de linhas direitas. Se gostos não se discutem, riscos também não. É arriscado.

  • arte ridícula

    Quem nos implantou na cabeça que a arte é bela? Que a obra é para enfeitar?

    Não sei como isto começou, mas de alguma forma associamos a arte ao belo. Deve ser obvio, e eu sou um ignorante, mas aqui estamos. 

    O comum dos mortais irá preferir arte bela do que arte feia, porque bela/feia é o seu qualificativo, e não a emoção, o significado, o desafio, o manifesto. 

    A arte é um grito, um suspiro, um sussuro, um pedido, um nada porque se recusa a ser alguma coisa só porque alguém precisa de a colocar numa caixa, de a nomear e classificar.

    Não há arte melhor que outra, arte é o que cada um quiser.

    Arte não é o mercado de arte. Arte não é a audiencia que tem. Arte não é se teve o subsidio ou a aprovação de qualquer digno comite. 

    Como em tudo, nem toda a arte tem o mesmo impacto. Tudo bem.

    Há arte com impacto, arte que é ignorada e arte que ninguém nunca vê.

    A melhor arte é subjectiva, de um sujeito ou conjunto de sujeitos (colectivo?).

    A arte é uma forma de expressão. Há aquela que se percebe, que alguns percebem, que alguns não se atrevem a perceber ou que ninguém ousa perguntar.

    Há coisas ridículas? Sim. Para mim, para si. Mas e então? Quem define o que é ridículo?