Autor: Hugo Macedo

  • liberdade de insultar e outras formas de expressão

    O insulto sai fácil quando nos faltam os argumentos. É um sinal que tropeçámos nos argumentos, ou melhor que iamos saltando de argumento em argumento até que colocámos o pé em falso, o pé procura argumento e não o encontra. Resta-nos o insulto. “Isso é porque tu és um…” – nominativo, classificativo. Ou um “Vai mas é para…” autoritário. Ou um que quase passa por argumento “Isso são os …. que dizem”, indireto-nominativo.

    Por isso é que o insulto deve ser livre e bem vindo. 

    Embora o povo quisesse que “Se nao os vences junta-te a eles” na verdade o povo “se não os vence, insulta-os”. 

    Porque se só me insultas se não me con-vences. 

    Insulta-me e dirte ei quem és – és um derrotado. 

    Vá, insulta-me! Vê-se te atreves!

    Não prometo ser espelho e devolver-te na perfeição. Mas fica já a saber que quando me insultares vou secretamente encher-me de orgulho, quicá corar, de pensar que esgotei-te, limpei o que havia para limpar, e quando rapas o tacho o que sai é um insulto – já não é coisa que se consuma, já é um detrito, queimado, encrustrado. 

    Por isso deviamos liberalizar o insulto. Ou no minimo discriminaliza-lo. 

    É feio, mas não deve ser ilegal. Tolerar o mau gosto dos outros é uma afirmação de liberalismo, é o sinal de uma sociedade tolerante e evoluida. 

    Isto versus a imposição de um suposto bom gosto que só pode ser fascissoide, imposto por um qualquer comité do bom gosto e dos bons costumes.

    A liberdade é caotica, e representa todo o espectro da estética – do bom ao mau gosto de cada um. Ninguém reina, todos têm o direito ao seu gosto, mesmo o mau.

    Percebo que custa mais a quem gosta de ordem, anglos retos, limpos e aceticos. Para aqueles que a ordem é sinal de harmonia de uma existência superior. A ordem bela como oposição ao caos abominavel. Mas não deve ser por acaso que a estética ditatorial sempre gostou de ordem, estrutura, retas e retos.

    O que temos numa sociedade liberal de gostos, não é caos, é uma organica complexa de misturas, dialeticas, dialogos, argumentos e contra-argumentos, encontros e desencontros. Organico e complexo, com multiplas camadas. Por vezes conseguimos distinguir padrões. Zonas desenhadas a esquadro em oposição às que se assumem como esquissos.

    As pessoas do esquadro, não gostam de linhas imperfeitas. Os artistas orgânicos, não gostam de linhas direitas. Se gostos não se discutem, riscos também não. É arriscado.

  • arte ridícula

    Quem nos implantou na cabeça que a arte é bela? Que a obra é para enfeitar?

    Não sei como isto começou, mas de alguma forma associamos a arte ao belo. Deve ser obvio, e eu sou um ignorante, mas aqui estamos. 

    O comum dos mortais irá preferir arte bela do que arte feia, porque bela/feia é o seu qualificativo, e não a emoção, o significado, o desafio, o manifesto. 

    A arte é um grito, um suspiro, um sussuro, um pedido, um nada porque se recusa a ser alguma coisa só porque alguém precisa de a colocar numa caixa, de a nomear e classificar.

    Não há arte melhor que outra, arte é o que cada um quiser.

    Arte não é o mercado de arte. Arte não é a audiencia que tem. Arte não é se teve o subsidio ou a aprovação de qualquer digno comite. 

    Como em tudo, nem toda a arte tem o mesmo impacto. Tudo bem.

    Há arte com impacto, arte que é ignorada e arte que ninguém nunca vê.

    A melhor arte é subjetivo, de um sujeito ou conjunto de sujeitos (colectivo?).

    A arte é uma forma de expressão. Há aquela que se percebe, que alguns percebem, que alguns não se atrevem a perceber ou que ninguém ousa perguntar.

    Há coisas ridículas? Sim. Para mim, para si. Mas e então? Quem define o que é ridículo.

  • o elixir da curiosidade

    Discordo. Contraponho. Rebato. Contradigo. 

    Porque assumo que te vou convencer quando partimos de uma posição diferente?
    De onde vem esta ideia romântica, idílica, utópica até, de pensar que te posso convencer daquilo que não acreditas. Eu tenho uma posição, tu tens a tua. Infelizmente (ou não) são posições distintas, distantes. Há uma distância que as separa. Quando nos apercebemos, quando olhamos para a outra posição e percebemos a distância, ganhamos folgo. Não olhamos para o lado, não nos desinteressamos, pelo contrário, estamos prontos a mostrar que o outro está do lado errado.

    A dança não é sempre igual. Umas vezes as coisas começam em “pezinhos de lã”, como se testássemos as águas, tivéssemos receio ou simplesmente por cerimónia e cuidado. 

    Outras tantas, ou por estarmos confortáveis com a contra-parte, ou por extremo desprezo (os extremos tocam-se!) irritamo-nos, levantamos a vós, mostramos incredulidade, raiva, agressividade. Como se a projecção física fosse um míssil em que o argumento é a ogiva. 

    Imagina o elixir da curiosidade. Tomávamos e imediatamente, viria das nossas entranhas uma curiosidade insaciável. 

    Para haver discórdia é preciso que os dois lados tenham ou informação diferente ou uma diferente interpretação da informação disponível. Ambas são incógnitas – podemos assumir mas não sabemos. 

    Mas, sob o efeito do elixir, podemos resolver esses enigmas. Mal tropeçamos na discrepância, vem-nos numa ância de conhecer, de explorar, de perceber o outro – o que é que ele sabe que eu não sei? Não com vontade de competir, mas com fome de saber. 

    Claro está, isto é mais fácil de escrever do que fazer.

    Ter a clarividência de parar para beber o elixir quando as fundações do nosso ser, da nossa moral, estão a ser mal tratadas, questionadas, ignoradas, não é coisa pouca. Agarrar o momento em que sentimos o sangue fluir para a cabeça, em que a barriga se contorce, e o sobrolho se enruga. O corpo antecipa-se sempre à mente. Ainda não sabemos e já sentimos. 

    Em vez de reagir, quando agarramos o momento e o tomamos como nosso, ganhamos o controlo, o espaço para decidir como agir. 
    Ao libertar-nos do instinto, ganhamos liberdade.

  • apoiado

    O cão dejetou no meu sapato enquanto eu distraído olhava para o telemóvel. Parece-me a imagem perfeita.

    Podia ter sido quase atropelado, ou ter esbarrado com alguém grande ou pequeno, novo ou velho. Mas não, foi uma imagem bem menos violenta, mas bem mais ilustrativa da nossa distracção coletiva. O cão dejeto no meu sapato enquanto eu olhava para o telemóvel.

    De notar que não faço ideia do que via ou fazia no telemóvel. Sei que ele me tinha naturalmente sugado a atenção, a consciência, para esse metaverso, esse éter cujo telemóvel é porta de entrada. O que ficou retido na memória foi a poia, pequena, bem definida, que ilustrou o pecado da distração.

    Não sei se foi o cão. Ou ele apenas serviu de instrumento. Mas alguém quiz mandar uma mensagem. Alguém me quiz abanar, acordar e avisar. 

    Não vi a poia chegar, é chato, mas fico a pensar em todas as outras coisas que não vi, não reparei. Passou-me ao lado. O quê? Não sei, e isso ainda me chateia mais, imaginar todas as coisas, pessoas, acontecimentos que passaram por mim e que eu, absorto noutro mundo, não notei.

    Só posso imaginar. Nem quero imaginar. Oportunidades, caminhos que não tomei, caminhos que não evitei, porque estava noutra. 

    A questão não é questionar o inquestionável: que o metaverso (internet como universo paralelo) traz benefîcios. É obvio que sim. A questão é de forma, não de conteúdo. A forma neste caso tem duas caracterîsticas – usurpação da atenção de outra atividade e a reatividade associada. Não que passear o cão requeira 100% da minha atenção a todo o tempo – apenas algum estado de alerta para outros cães, para o transito, para as necessidades que precisam ser recolhidas (idealmente do chão!) e para eventuais excesso de carinho que o cão queira dar a crianças e graúdos. Mas dito isto, o dito metaverso raptou a minha atenção, usurpou-a. Atenção esta que podia estar desatenta na vida real, mas não desaparecida. 

    Outro aspecto questionável é que eu não escolhi estar alheado, distraído ou imerso no dito metaverso. Eu reagi a um impulso, uma notificação, uma ideia ou necessidade – e o que seria apenas num instante, num espreitar, num breve entra-e-sai, levou-me que nem a corrente de um rio.

    Se estamos cada vez melhor a distrairmo-nos, estamos cada vez pior a não fazermos nada, em estar num estado ocioso. 

    Distraímo-nos com pouco, e concentramo-nos em nada. Muita coisa de forma pouco profunda. Quantidade mais que qualidade. Saltamos sem nunca pousarmos. Não saboreamos, não refletimos, não esperamos, não absorvemos, não somos surpreendidos, porque distraídos.

    Para saborear algo, não nos podemos distraír com outras coisas. E não falo só de comida. Uma vista, um céu azul, um sorriso de uma criança, um abraço de amigos. Saborear o momento, colher a colher. Com plena consciencia de cada instante, de cada centimetro, de cada toque, de cada olhar. Sa-bo-re-ar.

    Não refletimos. Refletir implica um esforço consciente para pensar em algo. Ping. Lá se foi a atenção e a reflexão. Ficamos com uma ideia.