O cão dejetou no meu sapato enquanto eu distraído olhava para o telemóvel. Parece-me a imagem perfeita.
Podia ter sido quase atropelado, ou ter esbarrado com alguém grande ou pequeno, novo ou velho. Mas não, foi uma imagem bem menos violenta, mas bem mais ilustrativa da nossa distracção coletiva. O cão dejetou no meu sapato enquanto eu olhava para o telemóvel.
De notar que não faço ideia do que via ou fazia no telemóvel. Sei que ele me tinha naturalmente sugado a atenção, a consciência, para esse metaverso, esse éter cujo telemóvel é porta de entrada. O que ficou retido na memória foi a poia, pequena, bem definida, que ilustrou o pecado da distração.
Não sei se foi o cão. Ou ele apenas serviu de instrumento. Mas alguém quiz mandar uma mensagem. Alguém me quiz abanar, acordar e avisar.
Não vi a poia chegar, é chato, mas fico a pensar em todas as outras coisas que não vi, não reparei. Passou-me ao lado. O quê? Não sei, e isso ainda me chateia mais, imaginar todas as coisas, pessoas, acontecimentos que passaram por mim e que eu, absorto noutro mundo, não notei.
Só posso imaginar. Nem quero imaginar. Oportunidades, caminhos que não tomei, caminhos que não evitei, porque estava noutra.
A questão não é questionar o inquestionável: que o metaverso (internet como universo paralelo) traz benefîcios. É obvio que sim. A questão é de forma, não de conteúdo. A forma neste caso tem duas caracterîsticas – usurpação da atenção de outra atividade e a reatividade associada. Não que passear o cão requeira 100% da minha atenção a todo o tempo – apenas algum estado de alerta para outros cães, para o transito, para as necessidades que precisam ser recolhidas (idealmente do chão!) e para eventuais excesso de carinho que o cão queira dar a crianças e graúdos. Mas dito isto, o dito metaverso raptou a minha atenção, usurpou-a. Atenção esta que podia estar desatenta na vida real, mas não desaparecida.
Outro aspecto questionável é que eu não escolhi estar alheado, distraído ou imerso no dito metaverso. Eu reagi a um impulso, uma notificação, uma ideia ou necessidade – e o que seria apenas num instante, num espreitar, num breve entra-e-sai, levou-me que nem a corrente de um rio.
Se estamos cada vez melhor a distrairmo-nos, estamos cada vez pior a não fazermos nada, em estar num estado ocioso.
Distraímo-nos com pouco, e concentramo-nos em nada. Muita coisa de forma pouco profunda. Quantidade mais que qualidade. Saltamos sem nunca pousarmos. Não saboreamos, não refletimos, não esperamos, não absorvemos, não somos surpreendidos, porque distraídos estamos.
Para saborear algo, não nos podemos distraír com outras coisas. E não falo só de comida. Uma vista, um céu azul, um sorriso de uma criança, um abraço de amigos. Saborear o momento, colher a colher. Com plena consciência de cada instante, de cada centímetro, de cada toque, de cada olhar. Sa-bo-re-ar.
Não refletimos. Refletir implica um esforço consciente para pensar em algo. Ping. Lá se foi a atenção e a reflexão. Ficamos com uma ideia.