Autor: Hugo Macedo

  • cacofonia fm 

    Estás numa esplanada. Aguças o ouvido para a mesa do lado esquerdo. Sem olhar viras a orelha para o casa do lado direito. Ao longe sentes alguém a contar o que se passou ontem à noite. Hesitas o que sintonizar. 

    Por momento sentes a cacofonia. Esta-la-pa-re-del-gil-da-pa. Como se apanhasses uma silaba de cada mesa. 

    Primeiro estranhas, depois deixas-te ir. Sentes um groove, sincopado.

    Não te podes esforçar. Tens que sintonizar e ir no flow. Uma mistura de conversas, sotaques, histórias e personagens. Primeiro soa a ruído. Mas chega a um ponto de harmonização mágico. Parece um rap progressista. Com beat box. Ou beat rap ou rap box. 


    Se me pedissem: “Escolhe um super-poder mas não o podes utilizar para ser herói ou para salvar o mundo”. Muitos escolheriam voar – mergulhar no céu e sentir o cume da liberdade.  Engraçado, mas acho que me ia fartar. É como brincar sozinho num parque infantil, a liberdade primeiro entusiasma-nos depois desfaz-se em solidão e tristeza.

    Um super-poder muito mais interessante era poder ouvir as conversas da mesa ao lado, ou da mesa do fundo. Sem perturbar, entrar naquelas vidas, naquelas conversas, sem intervir, só espreitar, escutar.

    Que vidas tem aquela gente. Somos todos iguais ou todos diferentes. 

    Lá no fundo somos todos iguais, com os mesmos medos e desejos. A superficialidade é muito mais interessante. 

    Somos todos inseguros, isso é obvio e previsível. O que é interessante é saber como se isso se revela, como surge na vida de cada um e quais a histórias e as crenças por traz dessa insegurança. É tipo uma analise invertida – já sabemos que és inseguro, agora diz-me as historias onde essa insegurança é protagonista. 

    Na mesa do fundo ela está insegura porque desde  o divorcio, não sabe se consegue amar mais alguém.

    À direita a conversa está à tona, eles armam-se das suas façanhas, inconscientes das suas inseguranças transvestidas de troféus.

    À esquerda ele tem um problema no trabalho. Sente-se injustiçado e incompreendido. Queixa-se. Deixa-se.

    Desligo. Ainda aparece alguém que me empurra para o poço da vergonha – “Get a Life!”

  • gostas pouco gostas

    Gosto do trabalho mas às vezes não gosto de trabalhar.

    Mais raras vezes não gosto do trabalho.

    Gostar de trabalhar não é muito bem visto nos dias que correm. Podemos dizer mal da vida, do trabalho, do patrão, do colega, mas dizer que se gosta do trabalho é que não. 

    Podemos safar-nos com um “senão fosse …” tipo eu até gosto do trabalho “senão fosse o patrão” … Embora, aqui entre nós, sabemos que o gosto do trabalho apenas aparece como o puxar da fisga para atingir o olho do patrão. Queremos atingir o patrão, não é novidade, mas reforça o que a maior parte sente ou toma como normal. 

    Quem é que se atreve e a vir para a rua dizer bem do chefe? Se por fortuna disser bem do chefe, logo deve assegurar que estão do mesmo lado da barricada e que ambos abominam o patrão.

    Dizer mal do patrão é espectável e um certificado de normalidade. Dizer bem do patrão não é normal, nem para o filho.


    As pessoas que dizem mal do patrão, geralmente denominadas “trabalhadores” por vezes agregam-se em procisões com cantigas menos simpáticos.

    É interessante observar.

    Por um lado identificam-se como trabalhadores. Como pessoas cuja sua essência é o trabalho. Advogam o direito ao trabalho. Exaltam o trabalhador.

    O problema é o patrão. Parece que não gostam dos patrões. De quem lhes dá trabalho, de quem lhes paga. 

    “Não me pagam pra isto!”
    Ai pagam pagam. Ou achas que te pagam para gostar. Se gostasses não precisavam de te pagar. Aliás, maior parte das coisas de que gostamos temos que pagar para usufruir delas. Não preciso dar exemplos pois não?  

    Segundo a lei do prazer e da procura: quanto mais prazer der mais devemos pagar. Ou seja, trabalhos mais satisfatórios deviam ser mais mal pagos, do que trabalhos chatos.

    O que os trabalhadores se queixam é que o seu trabalho é chato e não lhes pagam o suficiente para isso. Ao contrário, protestam, os patrões têm trabalhos divertidíssimos e são pagos uma exorbitância para o cumprir. Claramente algo está mal neste sistema. Ou uns recebem demenos ou outros divertem-se demais.

    A utopia é o sitio onde todos se divertem e pagam para trabalhar.
    Não faz sentido? Pois, é uma utopia.

    Viva o trabalhador .
    Morte ao trabalho.

    Viva o trabalho.
    Morte ao trabalhador.

    Trabalho. Gostas pouco gostas. 

  • trabaralhar

    Quando achas que estás a trabalhar. 
    Mas só baralhas e voltas a dar. 

    Procastinas. 
    Não atinas. 

    Mexes nos papéis. 
    Aos papéis. 

    Alt-tab alt-tab alt-tab 
    Não páras de saltar.
    Não terminas e és incapaz de começar. 

    Navegas na gelatina. 

    Vai trabalhar malandro.

    Doí-me a costas. 
    Vou-me deitar. 

  • odeio livros

    Ir à feira do livro é um acto de masoquismo. Provoca dor e prazer. Um prazer que dói. Uma dor da qual não fujo. Uma promessa de êxtase que descamba em dor. Ano após ano o calvário repete-se.

    Aprendi a não frequentar livrarias, mas a feira é a sereia da qual não consigo escapar. Ouço a sua voz ao longe e caio inevitavelmente no seu regaço.

    Tenho vergonha, mas por esta altura já é por demais evidente. Eu e os livros temos uma relação difícil, quiçá tóxica, mas que apenas concebo como platónica.

    A peregrinação anual à feira expõe-me, dilacera-me.
    É o momento de revelação, em que a nossa relação se expõe para quem queira ver.

    Sinto um aperto na garganta. O peito a colapsar e a espremer o coração. A ansiedade rouba-me o ar. Minúsculo olho incrédulo perante a enormidade de cultura, conhecimento e criatividade…
    Sinto-me uma criança paralisada por tantos estímulos e desejos. Imagino um jovem virgem à frente de uma ninfa desnuda.

    Nunca vou conseguir ler tudo aquilo. Mas a frustração não vem desta realização de primeiro grau. Afinal ninguém vai ler aquilo tudo.

    O embate vem da vergonha, da interiorização de admitir que eu não leio. Leio tão pouco, que não dá para medir. É como medir a espessura de um cabelo com uma régua. Nada. Incomensuravelmente infímo.

    Não havendo consumação da leitura, a minha relação com os livros é puramente platónica. Eu gosto da ideia dos livros. Gosto da ideia de ler. Mas descobri que este amor é platónico, pertence ao mundo das ideias, dos desejos, dos conceitos.
    Ir á feira é como ir a um peep-show, um show em que vês mas não tocas, olhas mas não consomes. Estão ali para te provocar, para te excitar. E tu sabes que a não consumação do desejo é o maior prazer que podes ambicionar. 

    Ódio não é o antónimo de amor. Ódio é amor. O antónimo de amor é indiferença.

    Eu amo livros na mesma medida que os odeio.
    Tenho vergonha de os odiar, mas ainda mais de não os ler.

    É estranho. É como medíssemos o amor pelo número de consumações do ato.

    Não me vou enganar. Não consigo dizer “nunca mais”. Sem consumação, com a dor que me é familiar, vou fatalmente voltar.

    Pelo meu amor-ódio pelos livros.

  • o outro

    O outro tem as costas largas. Ou é um saco sem fundo. Ou a fonte de todos os males.

    A culpa é do outro.

    Do chefe. Do sistema. Do poder. Do corrupto. Do costume. Do habito.

    Nunca percebi aquela história da culpa morre solteira. Não sei se se casa ou não. Mas que tem muitos pretendentes tem. Vai com todos.

    Com o chefe. Com o sistema. O poder. O corrupto. O costume. O hábito.

    A culpa é uma prostituta.

    E nós somos proxenetas que alimentamos essas relações – não queremos nada com ela, mas queremos ela com outros. Quantos mais melhor.

    E de quem é a culpa?

    Não é nossa. Nós somos impolutos, puros, virgens, eunucos.

    É do chefe. Do sistema. Do poder. Do corrupto. Do costume. Do habito.

    Nós somos analistas, comentadores, observadores atentos, críticos,… muita coisa. Culpados é que não.

    Analisamos, comentamos, observamos, criticamos … os culpados.

    Somos informados, letrados, versados, ponderados.

    Culpados é que não!

    Isso é o outro.

  • velho

    Quando é que damos conta?

    Em termos absolutos é fácil. Negamos até sei lá. As mãos tremerem. Já lavei os dentes? Quais?

    Vão andar anos a esconder-nos a evidência que o nosso espelho recusa em nos mostrar. Ah! Fiel amigo.

    O drama é o benchmarking.

    O pior é ser apanhado a ser cota. Ou pior, a ser cool e bater com a cara na porta. Não fui verificar mas juro que cota é antónimo de “cool”.

    E quando começamos a questionar se devíamos ter um piercing ou uma tatuagem. Que andámos distraídos mas que obviamente faz todo o sentido.

    O pior para mim é a música. Ouvimos algo novo que gostamos e secretamente achamos que ganhamos um trunfo. Até descobrimos acabou se sair… há 7 anos atrás.

    É nessa altura que paro e rebobino: consigo descrever a música dos 60s, 70s, 80s, 90s, 2000, … o que é a música dos 2010 e dos 2020s (emoji da vergonha)

    Estou desactualizado, desconectado, desorientado…

    Velho não.

  • quando for grande

    Quando for grande vou morrer.

    Até lá… vou viver.

    Assim espero.

    Quero tanto ser grande como morrer. Inevitável mas quanto mais tarde melhor. Até lá não pensamos nisso. Negamos. Fugimos.

    Quando for grande vou deixar de brincar, de sonhar e voar. Vou comportar-me. Vou morrer.

    Quando for grande vou ser alguém. Quando for alguém vou deixar de ser eu. Vou morrer.

    Quando for grande vou. Não fico. Não, Fico. Morto.

    Quando for grande vou morrer.

  • um buraco de luz

    Há quem esteja num buraco e pense que viu a luz 

    Há outros que cientes do buraco, procuram a luz.

    Está escuro.

    Estamos num buraco ou num túnel. 

    Um tunel é uma travesia. Um buraco é um buraco, não tem saída, apenas entrada.

    Caímos num buraco. Entramos num tunel.

    Com tempo apodercemos num buraco ou saímos do tunel.

    A curiosidade procura a luz. 

    O medo vê escuridão.

    Uma luz aparece. Ínfima, tímida, escondida.

    Aproximamo-nos e ela confiante aproxima-se. 

    Mais e mais até nos engolfar no seu brilho. Fomos. Saímos. Entrámos. 

    Passámos. 

  • arte não se consome

    Ontem fui ouvi-la, vê-la, senti-la em palco. Na sua selva.

    A Maria Joao faz musica dificil de consumir.

    A Maria Joao faz musica maravilhosa de apreciar. De saborear. 

    O meu cérebro matemático pergunta se serão duas variáveis ortogonais. Isto é, uma coisa não tem a ver com outra. Talvez. Fast food também é food? Fast fashion também é fashion? ¯\_(ツ)_/¯ 

    E arte saboreia-se ou consome-se. Que sabores são esses?

    A arte da Maria João não se consegue explicar. Tenta.

    Explica-la é dissecá-la e falar de alguns ingredientes. Esquecendo outros. Ignorando outros. E reduzindo o todo às partes. 

    Arte daquela não se explica, não se descreve. Sente-se. 

    A arte da Maria João é mais que música. É performance. Canta com tudo, com a voz e o corpo. É um instrumento de infinitas possibilidades. Por vezes parece um rio por outras um vendaval. Um suspiro. Um esgar. 

    Compramos o disco. Ouvimos a faixa para entreabrir a porta que nos deixa espreitar para o seu mundo que não é o nosso. 

    É impossível empacotar a sua arte. Mesmo que embalada com um visual onírico à altura dos sons. Escapa algo. Muito. 

    A arte não é consumo. 

    Produto é produto

    Arte é arte. 

    Não compro o disco. Fico com o disco em troca de um valor simbólico pelo prazer de contribuir, de dizer obrigado. 

    O disco é o token que me permite voltar a ouvi-la, voltar a sentir a sua energia, não no estúdio, no palco. 

    Isto tudo deixa-me a inquirir sobre a relação entre arte e negócio, arte e subsistência, arte e viver da arte. 

    Falamos pouco sobre como tudo o que somos como sociedade vem de uma reflexão e acção filosófica – de perguntas e hipóteses filosóficas. E a arte anda no meio disto tudo. Como forma de explorar túneis que saem do salão da racionalidade. Que incluem mas não se limitam às emoções. Que exploram os limites da nossa existência ou do sentido dela. Túneis labirínticos que escondem segredos sobre a nossa existência.

    Tem valor. Não de somenos. 

    Qual o preço?

    Posso pagar com MBWay?

  • saborear

    Saborear. Saber saborear para saber melhor, para descobrir o sabor que já estava lá à espera de ser encontrado. O sabor não está escondido. Nós é que andamos distraídos

    Saborear é rapar o tacho, é aproveitar, é deliciar-se até à ultima colher, até à ultima gota. Se ninguém estiver olhar, lambemos, sem vergonha. Sabe ainda melhor, a transgressão dos bons costumes.

    Saborear é aproveitar.

    Querer mais é negar o prazer de saborear até ao tutano. Se houver mais não nos damos ao trabalho. Saborear dá trabalho, implica presença, concentração dos sentidos num momento, num gesto. Saborear não é coisa que se faça distraído. Saborear requer intenção.

    Se me oferecem mais, sem mais, então não preciso de saborear o que tinha. Não preciso de rapar o tacho, sugar até ao tutano. 

    Saborear é a antitese do consumismo impulsivo. 

    Saborear é tantrico. É antitese do mastiga-deita-fora.

    Saborear é chupar o rebuçado até ele se dissolver.

    Dou por mim a passear à beira-mar num dia primaveril daqueles bipolares, entre o sol e chuva. 

    Reparo na beleza da paisagem e do momento. Ainda antes de pensar que o momento vai acabar apanho-me a pensar quando vou ter o próximo. Ainda antes de acabar, já estou ansiar por mais. Caio nesta ansiedade e esqueço-me de saborear. Ansiei por mais quando mais estava à minha frente, agora.

    Saborear pode muito bem ser a formula para acabar com ansiedade, a inveja e tudo o que sofremos por não ter. Porque saboreando, temos, mais.

    Dizem-nos para nos focarmos no presente. Podemos estar no presente, a pensar que está a passar, que vai acabar, que vai fugir. 

    Ou podemos simplesmente saborea-lo, lambe-lo, rapa-lo, suga-lo até ao tutano.